Heráldica da Santa Casa da Misericórdia de Montalvão (SCMM)
Os elementos que compõem a heráldica atual da Santa Casa da Misericórdia de Montalvão, supostamente na sua figuração original são: Coroa Real, dois Corações com Artérias; dois Cravos- perfurando aqueles - e uma calote esférica ou semiesfera, à qual ligam as artérias referidas. Estão representados no frontão da Igreja da Misericórdia - situada frente à Igreja Matriz de Montalvão, no Largo D. Manuel Godinho (topo da rua do Arrabalde) -, muito provavelmente desde há quase cinco séculos. Crê-se ser esse, aliás, o único local onde estariam representados.
Não existem registos sobre a policromia original dos diferentes elementos, não sendo, porém, difícil imaginar, com relativa segurança, a dos corações e, com alguma aproximação, a das artérias, mas com mais dificuldade a da coroa e calote esférica.
À margem deste texto e por especial deferência do Diretor do Arquivo Histórico da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa – Dr. Francisco d’Orey Manoel –, que nos remeteu as imagens juntas, podemos verificar o que referimos no parágrafo anterior.
Trata-se de uma fotografia integrada na documentação do 5º Centenário do Nascimento da Rainha D. Leonor, sendo propriedade da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa – Arquivo Histórico; código de referência: PT-SCMLSB-5CNRDL-PM-03-03, para cuja publicação neste portal, dispomos da necessária autorização[1] .
Para além da foto da fachada, o documento gentilmente remetido por aquela instituição, contempla ainda uma foto do altar-mor e da bandeira da Santa Casa da Misericórdia de Montalvão, com resumo do inventário das imagens existentes à época; bandeira; arquivo e alfaias religiosas.
A imagem em relevo que ainda se mostra na fachada da Igreja da Misericórdia, mas sem as cores atuais, prevaleceu até ao ano de 1997, altura em que o Provedor de então, Capitão José da Graça de Matos, acompanhado pela Mesa de Irmãos, lhe introduziram a policromia e a moldura que conhecemos agora, embora esta, na verdade, não tenha qualquer correspondência com a imagem original. A tentativa, bem-intencionada, por certo, foi a de conferir à imagem uma policromia visualmente mais atraente, embora sem obedecer a critérios de rigor, ficando ao gosto pessoal do artista, como aquele antigo Provedor reconhece.
O certo é que, desde então, tal imagem passou a ser adotada como brasão institucional, figurando na documentação e bandeira da instituição, como a seguir se ilustra.
Voltando aos componentes principais e históricos, digamos assim, da heráldica da Misericórdia de Montalvão, importa interpretar apenas o significado dos elementos originais que merecem tal classificação, dado que a moldura envolvente não tem ali qualquer representação, para além da preferência estética do pintor. É por isso um elemento espúrio, que importará corrigir na devida oportunidade.
Quanto aos restantes, tendo como base as informações recolhidas junto de instituições e pessoas devidamente credenciadas, sem que, no entanto, se considere essa pesquisa terminada, há a considerar, a descrição seguinte.
Antes, porém, convém salientar que a distribuição dos componentes da imagem que estamos a analisar, não obedece, em bom rigor, à organização convencional dos elementos que compõem qualquer brasão. Ainda assim, encontramos áreas bem definidas, que podemos tentar arrumar segundo o usualmente convencionado:
- No topo, (Campo ou Chefe, segundo a terminologia específica da heráldica) situa-se a Coroa real; ao centro (Centro, abismo ou coração), temos a calote esférica; nos flancos surgem as artérias; e na zona inferior (Ponta - ao centro; Cantão direito e esquerdo da Ponta, nas laterais), posicionam-se os dois Corações, perfurados por Cravos ou pregos.
Como referido antes, as cores atuais poderão não corresponder às originais, dado a repintura não ter obedecido a qualquer referencial de rigor. Assim, a descrição que a seguir fazemos é factual, por interpretação direta do que existe. No entanto, as figuras representadas em alto-relevo, corresponderão às originalmente executadas, cuja data se presume apenas por associação de marcos históricos que foi possível investigar.
Naquelas condições, eis a correspondente descrição e significado:
Coroa real: trata-se de uma coroa fechada, composta aparentemente de três arcos simples, dois a negro, nimbados de azul claro.
Aos arcos sobrepõe-se uma cruz (Cruz de Cristo), a negro, supostamente sustentada por esfera, também chamada de crucífero ou orbe, representando o Universo ou o Mundo (mas o mundo cristão), como aparece igualmente na iconografia religiosa associada à imagem do Menino Jesus Salvador do Mundo.
A base da coroa, onde ligam os arcos, aqui colorida a negro, está guarnecida com uma cinta em azul claro, tendo a base ornamentada por figurações de pedras preciosas de diferentes cores.
Em termos gerais, a coroa real representa a autoridade monárquica, o poder e a legitimidade do Rei. Por sua vez, a forma fechada simboliza a unidade do Estado e do Povo.
Até ao reinado de D. Sebastião, a coroa real usada consistia num simples aro em ouro, com florões, (coroa ducal) com a forma aberta e inspirada na coroa de Duque, oriunda da primeira dinastia, tal como a encontramos representada a adornar a cabeça dos reis anteriores àquele monarca. Intencionalmente, porém, aquele malogrado rei ordenou a substituição daquele tipo de coroa por uma fechada, com arcos, para, em resultado da pretendida conquista de Marrocos - através da batalha de Alcácer-Quibir (4 agosto 1578) –, reforçar a autoridade régia e obter o título de Imperador, que a coroa fechada queria significar.[2]
Mas contextualizado isto, qual a importância e que relação tem para a heráldica da Misericórdia de Montalvão a substituição da coroa aberta pela fechada? É que a adoção deste tipo de coroa na imagem representada na fachada da respetiva igreja nos permite concluir que terá sido criada em pleno reinado de D. Sebastião ou posteriormente a ele. E se associarmos a isto o facto de o primeiro documento até à data conhecido, com referência à mesma instituição misericordiosa ter sido emitido por aquele mesmo rei em 1572, mais se reforça aquela conclusão, o que, no entanto, não afasta a possibilidade de a criação da instituição propriamente dita ser muito anterior a isso[3]
Corações: convém desde já esclarecer que não obstante as várias fontes[4] consultadas e opiniões verbais e escritas que recolhemos para interpretação rigorosa e fidedigna do significado dos dois corações, nos fica ainda a sensação de que nem tudo ficou esclarecido. Ainda assim, algo de importante ficou desde já mais claro.
Como primeira nota mais relevante para a história de Montalvão e da sua Misericórdia, importa esclarecer que o seu brasão é o único que ostenta dois corações, a nível da heráldica das Santas Casas da Misericórdia Portuguesas, quiçá das que existem por esse Mundo fora, segundo a pesquisa efetuada.
E mesmo as que apresentam um só coração são diminutas. De acordo com a informação obtida na União das Misericórdias Portuguesas (Lisboa), apenas as Misericórdias de Mafra, Murtosa e Sangalhos, no continente, e de Lajes das Flores e Nordeste, nos Açores, apresentam um único coração, diferentemente representado em todas elas.
De todos os elementos figurados no brasão, os dois corações são o elemento mais relevante e o que carece de uma análise mais aprofundada. Qual, então, o seu possível significado?
Em primeiro lugar, convém meditar na etimologia ou origem da palavra Misericórdia[5]. Do latim miseratio (compaixão) e cordis (coração), dela retiramos o significado literal, “coração compadecido” ou, ainda, coração bondoso, condoído, como costumamos apelidar uma pessoa boa, generosa. Não era uma tentativa vã que os condenados, ao pedir perdão, clamavam misericórdia ou clemência esperando a benevolência dos algozes.
No conceito religioso e não só no cristianismo, Deus é misericordioso e, por consequência, os atos caritativos e as obras de misericórdia estão muito associadas a essa crença, sendo materializadas através da dádiva de esmolas, dos cuidados assistenciais e do tratamento de doentes, entre outros da mesma índole. É justamente isso que, numa das mais plausíveis interpretações, os dois corações da heráldica da Misericórdia de Montalvão poderão querer significar, representando cada um deles e no seu conjunto as 14 obras misericordiosas: 7 espirituais; 7 corporais.[6]
Segundo o Prof. Augusto Moutinho Borges[7], a representação dos corações estará relacionada com a “simbólica da paixão”, como exemplifica, …” a figuração da representação de Nossa Senhora das Dores, representada pelo coração trespassado por quantidade de espadas ou, por vezes, de objetos cortantes (dor do coração). Santo Agostinho, Doutor da Igreja, também é representado por um coração ardente (amor de coração), lisonjas representativas do amor pelo próximo, representado pelo coração trespassado em dor e pelo qual a Mãe de Cristo sofreu” … “E quais os 7 princípios corporais e os 7 princípios espirituais dos atos da Misericórdia, senão a dor (coração à direita) e o amor em Cristo (coração à esquerda);[8]
Em conclusão, para o mesmo Professor, “os dois corações simétricos são isto mesmo: o amor e a dor, ou seja, os 14 princípios dos atos da Misericórdia (7 espirituais e 7 corporais), ambas de par em par, ambos trespassados por espadas pelo qual somos materializados nos atos de bem fazer e por quem a Humanidade sofre”.
A hipótese de se associarem os dois corações à iconografia religiosa, popularmente mais conhecida do que aquela, ou seja, ao Sagrado Coração de Jesus e ao Sagrado Coração de Maria é, segundo o Prof. Moutinho Borges[9] ...”de todo impossível, pois este culto é mais recente e a simbólica da SCM é mais recuada” …
Tal hipótese foi também liminarmente refutada pelo Cónego Dr. Manuel Marques Pires, da Diocese de Portalegre-Castelo Branco, cuja opinião não deixa margem para dúvidas, por razões óbvias.
Sendo assim e salvo qualquer outra versão igualmente credível e que se sobreponha à que aqui desenvolvemos, ficamos com a interpretação de que os dois corações representados na heráldica da Misericórdia de Montalvão simbolizam, no fundo, a essência da sua criação e de todas as outras, ie, dar cumprimento às 7 obras corporais – coração à direita (esquerda do observador – e 7 espirituais – coração à esquerda (direita do observador).
Artérias: as ramificações que saem dos corações, como está bom de perceber, são as artérias, que no corpo humano alimentam de vida todos os seus órgãos. No caso em apreço, procurando ligar com o significado que atribuímos aos corações, podem querer representar a disseminação do espírito misericordioso, levando o auxílio material e o conforto espiritual a quem deles necessita[10].
Cravos: os objetos metálicos que trespassam os corações também não são comuns, tanto na iconografia religiosa, como nos brasões institucionais, neste caso das Misericórdias. De facto, o que normalmente encontramos associados aos corações são, como já referido antes, espadas que os trespassam ou chamas que deles saem ou, ainda, o que também é raro e muito curioso, se não único, um lenço branco atado nas pontas envolvendo o coração, como se de uma vulgar dor de dentes se tratasse (ex: brasão da SCM das Lajes das Flores – Açores).
No caso de Montalvão, trata-se de dois cravos ou pregos, simbolizando a crucificação e, por conseguinte, o martírio de Jesus Cristo.
É curioso notar que a bandeira processional da Misericórdia de Montalvão, numa das faces, que podemos considerar a principal – representando a “Pietá”, Nossa Senhora segurando seu Filho Jesus Cristo, após a descida da cruz - nos mostra os instrumentos do sacrifício de Cristo, entre os quais uma exemplificação do cravo com que foi pregado à cruz. Curiosa analogia, entre as imagens da Igreja da Misericórdia e da Bandeira processional.
Podem querer significar a dor e o sofrimento (associado à doença, à pobreza, ao presídio), mas também a benevolência e o perdão, tal como Cristo soube perdoar aos que o castigaram e maltrataram. Mais uma vez, é o espírito misericordioso e solidário que estão bem patentes.
Calote esférica: finalmente temos a semiesfera a que ligam as artérias. Este elemento é o que suscita interpretações mais especulativas, por a sua própria forma se poder associar a distintas coisas. A incerteza quanto à sua cor original também contribui para essa dúvida. Por exemplo, o Prof. Moutinho Borges, admitiu o seguinte: …” As ramificações que saem do coração são as artérias, função estética e ao gosto de quem concebeu os corações, que permitem sustentar um símbolo ovalado, em ouro (?) esverdeado, podendo representar um elemento agrícola da terra (azeitona, ?). A cor tudo aponta para esta realidade, devendo, no brasão atual, manter esta cor esverdeada e não alaranjada” ….
Sinceramente não perfilhamos desta possível interpretação, muito embora a representação da oliva seja comum em vários símbolos heráldicos, como é, por exemplo, o caso do Brasão da Junta de Freguesia de Montalvão. No entanto, não dispomos de informação suficiente para a cabal significação deste elemento.
Luís Gonçalves Gomes, 21-02-2017
(texto revisto em 02-02-2018)